
Descrevendo sonhos
Escrever um livro é como descrever um sonho. Na sua cabeça, tudo faz sentido. Fora dela, no entanto, a ideia pode parecer confusa, sem sentido algum e, por vezes, até sem graça. É por isso que alguns escritores reescrevem seus livros inúmeras vezes antes de anunciarem que possuem em mãos um manuscrito.
Tentar encontrar as palavras certas para descrever o que os olhos da imaginação são capazes de visualizar enquanto você sonha não é uma tarefa fácil. Nem sempre é possível encontrar a palavra certa. Além disso, às vezes parece que ainda não existe palavras no vocabulário para descrever certas coisas.
Colocar no papel o que está na nossa cabeça é uma tarefa que exige uma boa dose de paciência, resiliência e persistência. No trajeto que envolve o desenvolvimento de um livro, encontramos todos os tipos de problemas, diversidades, obstáculos, alegrias e diversão que podemos encontrar no mundo real.
Escrever um livro é muito mais do que contar uma história. Contar histórias é mais fácil quando você já conhece o mundo e os personagens. Mas geralmente não é isso que acontece na literatura fantástica. Na maioria das vezes, desbravar novos mundos e personagens míticos é um processo lento e penoso.

Então uma ideia brilhante aparece. Uma cena se desenvolve em sua mente. Você sente todos os sintomas que denunciam a chegada da ideia brilhante. (No meu caso são arrepios, olhos cheios de lágrimas, uma sensação estranha no estômago e uma urgência de colocar aquela ideia para fora da noite para o dia.) Você faz o trabalho de casa: pesquisa, vasculha os cantos mais obscuros da sua consciência para encontrar mais detalhes daquele mundo e daqueles personagens, e se compromete a divagar sobre a história até que ela esteja pronta para ser narrada. Quando conclui que já tem todo material que precisa para começar a escrever, você começa. Logo depois dos primeiros capítulos aparece o famoso bloqueio criativo. Em menos de um mês seu interesse pela história diminui e quando você se dá conta já nem sabe mais o que está escrevendo porque as palavras simplesmente não parecem certas. E provavelmente não são.
Do meu ponto de vista, existem duas maneiras de concluir um livro: na base da força ou na base da camaradagem. E o melhor método é aquele que fica entre os dois.
O que acontece é o seguinte: dependendo do livro que você está escrevendo, é necessário que uma quantidade absurda de informação seja compilada antes de você sentar para escrever. Para escrever um livro de fantasia, por exemplo, é preciso construir um mundo. Mundos possuem regras, sistemas sociais, coisas que precisam ser compreendidas – pelo autor, pelo menos – para tornar a história o mais crível possível. Se existe magia nesse mundo, o autor tem que saber como ela funciona para conseguir descrever de uma maneira que o leitor entenda o que o personagem está fazendo. Além disso, o comportamento dos personagens – tanto principais quanto secundários e até mesmo a sociedade como um todo – precisa estar bem desenvolvida para o leitor não ter a impressão de que as pessoas fazem o que querem porque o autor ficou com preguiça de organizar tudo de maneira coerente.

Ficção científica também não foge desse esquema. As únicas histórias que podem pular esse processo de desenvolvimento são aquelas construídas dentro da realidade em que vivemos. Isso porque o mundo já está pronto, já conhecemos o sistema operacional da nossa civilização e como as regras funcionam, então não precisamos para pensar em como o lugar é governado, que tipo de gente habita por aqui, do que se alimentam e por aí vai. Você pode quebrar as regras? Claro, mas aí vai estar saindo do reino da ficção e entrando no fantástico mundo do “e se?” especulativo (também chamado de fantasia ou ficção científica e derivados). Nesse âmbito, sinto muito em informar, vai ser necessário voltar uma casa e passar por todo aquele processo de construção de mundo e personagens que já mencionei.
Ter uma imaginação vívida não é sinônimo de maestria na arte da escrita. Eu mesma me considero uma escritora bem mediana com uma imaginação magnífica. Meu primeiro rascunho, escrito em 2009, nunca chegou ao fim. Na segunda tentativa de “ser escritora”, que começou em 2015, concluí meu (segundo) primeiro rascunho. Antes mesmo de terminar, já sabia que tinha alguma coisa errada e que, com certeza, algumas partes seriam reescritas.
Como eu sabia disso antes de concluir? Simples. Eu reconhecia a escrita feita na base da força e a escrita feita na base da camaradagem. Nos dias em que me forçava a escrever porque tinha que escrever – afinal de contas, eu era uma escritora, poxa – as palavras simplesmente saíam erradas e as cenas ou diálogos não possuíam veracidade. Isso aconteceu porque escrevi aquele rascunho tendo em mente apenas uma fração da história. Além disso, eu não conhecia bem os meus personagens e suas motivações (e isso é algo muito importante). Mas na minha imaculada inocência acreditei que tinha o suficiente para contar uma história.

Hoje, anos depois de ter escrito por completo esse (segundo) primeiro rascunho, reconheço minha ingenuidade. Mais do que isso, reconheço que essa história ainda não está pronta para ser contada. Ela ainda precisa amadurecer no meu subconsciente antes de ganhar as páginas em branco do que, um dia, será um livro.
Já se passaram anos e tudo que sei sobre essa história é que ela se passa numa espécie de realidade alternativa e que tanto o nosso mundo quando o mundo onde ela acontece estão interligados de maneira que os ecos do que acontece aqui ou lá são ouvidos em ambos os mundos. (Isso fez sentido? Para mim, ainda parece confuso quando tento explicar, e é por isso que sei que a história não está pronta.)
Eu nem ao menos sei porque diabos a personagem principal está aqui no nosso mundo, muito menos sei o que vai fazer ela “voltar para casa”. No começo, quando escrevi o primeiro rascunho, achei que a história girava em torno de um romance. Agora já nem sei se existe romance. Então vou deixar ela quietinha, apenas me dando o luxo de rabiscar algumas ideias e fazer algumas anotações quando ela resolver emergir do fundo da minha mente. Não vou forçar, não vou obrigar ela a sair de onde quer que esteja apenas porque sou uma escritora e deveria estar escrevendo. Não vou fazer isso porque, para mim, não é assim que se conta histórias. Além disso, posso escrever sobre outras coisas, contar outras histórias enquanto essa se desenvolve em seu próprio ritmo.

Quando você força uma história a sair de você, é bem provável que acabe contando besteiras. Mundos levam tempo para ser construídos, personagens levam tempo para ser desenvolvidos. E apressar esse procedimento faz a história sair errada. É como pegar um instrumento que você nunca usou e partir para a prática sem antes passar pela teoria. É preciso analisar a coisa toda antes de colocar a mão na massa.
Quando você tenta traduzir um sonho de forma literal, parece um bando de palavras agrupadas sem harmonia. Antes de tentar transformar as imagens em palavras, é preciso interpretar a história para, depois, inserir ela no contexto certo. Você já tentou traduzir um texto de forma literal? Fica horrível. As palavras parecem que não se encaixam. Isso sem mencionar que, por vezes, parece que tem alguma coisa faltando. Para a tradução ser coerente é preciso interpretação e adaptação. Traduzir textos, sonhos ou histórias que habitam o nosso imaginário, é uma tarefa que pode levar anos.
Talvez eu seja perfeccionista… Mas, talvez, o mundo precise de um pouco mais de cuidado e menos pressa com a criatividade – ou em qualquer área da vida, de fato.

